quinta-feira, 14 de agosto de 2008

§ Vou começar pela casa onde passei os primeiros anos da minha infância. Na verdade era um prédio em uma das ruas mais movimentadas de São Cristóvão, aquele bairro que fica bem na divisa da Zona Norte e do subúrbio, que também é Zona Norte, mas que o povo da Tijuca, de Vila Isabel e afins insiste em classificar como subúrbio só para se diferenciar e fingir que é a elite desse lado [mais caloroso] da cidade. Era um prédio pequeno; três andares e um apartamento por andar, com uma quitinete nos fundos.Eu morava no primeiro andar. Era um apartamento [que eu vou chamar de casa a partir da próxima vez, porque soa mais familiar e nostálgico] grande, com três quartos, um deles transformado em uma espécie de depósito pela minha mãe e que, em todo o tempo em que lá residi, só vi aberto umas quatro vezes. Aquele quarto era o meu objeto de desejo, era o porão ou o sótão que a gente vê nesses filmes, dos quais as crianças têm medo mas mesmo assim insistem em neles se aventurar. Eu também nutria sentimentos do tipo. Qualquer ruído ou coisa estranha pra mim provinha daquele lugar, porém o sonho de entrar ali era maior que o medo.Obviamente pelo fato de ter sido ali que eu inicialmente vivi, é de lá que tenho as primeiras recordações da minha vida: por volta dos dois anos, quando minha mãe me mandou jogar a chupeta na privada [e assim me livrar de uma vez daquele vício!] e o meu aniversário de três anos, quando compramos no supermercado Disco [que depois passou a se chamar Paes Mendonça e que hoje eu nem sei mais o que é] um bolo com glacê verde. Essas lembranças vêm até hoje à minha memória em forma de flashes. No andar de cima morava a “vovó Lourdes”, uma senhora que não tem ligação sangüínea alguma com minha família, mas que construiu comigo uma relação que deixa de lado todas essas leis da genética e se baseia no coração. Era ela quem me acalmava quando eu ainda era um bebê e tinha aquelas crises de choro. Era na casa dela que eu comia aqueles lanches e almoços da vovó e dividia com a Aline [ainda vou falar dela] um espaço naquela adorável cadeira de balanço de madeira escura. Ela também tinha uma filha, a Ana Cláudia, ou só Claudinha, uma moça com voz de desenho que tinha inúmeros casacos de pele e bolsas que eu queria usar nesse calor do Rio de Janeiro, e que ainda por cima foi minha primeira “professora de piano”. No último andar moravam o Sérgio, a Janete e a Aline, filha deles. Da Janete eu só lembro mesmo por fotos, porque ainda bem cedo ela teve um caso com o patrão, resultando no fim do casamento deles. Mas graças a Deus, a Aline ficou morando com o pai e se tornou assim, a minha primeira melhor amiga. Eu nasci e sete dias depois foi a vez dela de ver a luz desse mundo. Vivemos os nossos primeiros anos juntas e não lembro de termos tido essas briguinhas que todas as crianças têm. A gente contava até vinte e esse era o tempo que cada uma tinha pra desfrutar a cadeira de balanço da vovó Lourdes. Era um rodízio.A Aline tinha duas cachorras: a Sully, uma pequinês que [talvez até pelo fato de já estar meio velha] desprezava solenemente a nossa existência, e a Shana [não sei a raça; sou indouta nesses assuntos], que era gigantesca e diferentemente da outra, não podia nos ver que já vinha pulando em cima. Como o meu medo de cachorros vem desde a época em que o espermatozóide do meu pai se fundiu ao óvulo da minha mãe, prender a Shana era um ato pré-seqüente à minha entrada na casa deles. Mas também tenho boas recordações dessa cachorra, como em uma vez que ela se soltou e a Aline e eu tivemos que correr desesperadamente. Subimos até na mesa de jantar, o que não seria muito útil devido ao tamanho da cachorra. Mas isso deu tempo para o Sérgio prendê-la.Na casa ao lado direito do prédio morava a Marli, com a mãe, o marido e os dois filhos. Eles eram todos muitos simpáticos, e em uma das festas de um dos meninos, o bolo tinha o formato de um hambúrguer e todas as crianças fizeram uma roda pra cantar atirei o pau no gato. Pelo que lembro, essa foi a primeira das muitas vezes que eu parei pra me questionar o significado da musiquinha infantil, porque as únicas partes inteligíveis para mim eram o dona Chica e o miau. Na casa do outro lado morava uma família de cujos membros não recordo nomes. Só sei que a filha mais velha, mesmo com os seus 13 ou 14 anos, ainda chupava chupeta. O Natal e o Ano Novo todos nós passávamos juntos. Vinham outros membros de nossas famílias e amigos comemorar conosco. Era esplêndido. Aquela chusma de crianças quebrando nozes, lutando para ficar acordadas o máximo possível, correndo de um lado para o outro na garagem, e eu passando mal depois dos primeiros metros, por causa da minha bronquite.Hoje, olhando pela janela o princípio dessa noite nublada, que anuncia a chuva, eu penso, que saudade daquela época!

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