domingo, 25 de setembro de 2011

Encara o desafio?

§ Se havia uma coisa que eu não entendia era o prazer dos alpinistas em escalar montanhas altíssimas. Passar um frio de fazer os dedos caírem, falta de oxigênio, avalanches, riscos reais de morte... Se lá do topo ainda houvesse uma "vista linda", daquelas de recompensar todo o esforço, daria até pra compreender tamanho masoquismo. Mas não, os morros são tão altos que de lá só se avista neve, ou no máximo outros montes.

§ Até que um dia eu fui pra Bolívia e decidi fazer um passeio quase obrigatório para os turistas em La Paz: subir o Monte Chacaltaya, uma montanha de 5421m que fica nos arredores da capital administrativa boliviana. "Mais de 5 mil metros de altura?", você pode se perguntar, meio assustado ou espantado. Mas asseguro que subir o Chacaltaya é relativamente fácil. Há uma estradinha e carros e vans conseguem alcançar mais ou menos uns 5 mil metros. Depois disso é contigo, e você não precisa de equipamentos de montanhismo e escalada. Suas pernas são o suficiente para atingir o cume. Só não é mais fácil pela falta de ar absurda que você sente. Vou até corrigir: suas pernas E MUITO FÔLEGO são o suficiente para atingir o cume.

§ É comum as pessoas sentirem os efeitos do altitude sickness (dificuldade para respirar, dor de cabeça, enjoo) em La Paz, já que ela está situada a quase 3800 metros acima do nível do mar. Por isso é recomendado aos turistas passarem uns 2 ou 3dias sem fazer muitos esforços, para se habituarem à altitude. No meu caso, esses efeitos parecem ter sido acentuados. Não conheci ninguém que tivesse passado mais mal que eu por lá (e olha que, apesar de ser um pouco sedentária, disponho de boa saúde e dificilmente fico doente).

§ Por conta disso, subir aqueles 300, 400 metros que restavam até o topo da montanha foi um martírio pra mim. Todo mundo sente alguma dificuldade, mas dentre os que iam "ficando pra trás" do meu grupo, eu fui a última (e olha que havia pessoas já perto dos 60 anos). Todo o meu corpo ardia, sentia uma dor de cabeça quase insuportável, tinha a impressão de que os meus pulmões iriam explodir e a cada 3 ou 4passos eu parava uns 5 minutos para descansar e respirar. A questão é que havia um tempo para voltarmos até o nosso carro (acho que 2 ou 3 horas no máximo), então era preciso ser rápido pra depois poder dizer pra todo mundo que havia chegado aos 5421 metros.

§ Em um dado momento eu pensei que aquilo tudo era maluquice. Eu estava quase morrendo só pra chegar a um ponto alto, não ver muita coisa de lá (se bem que o Chacaltaya tem sim uma visão linda) e depois ter que descer. Talvez fosse melhor voltar dali mesmo, onde eu estava já sozinha, e ficar esperando o resto do grupo lá na estação, bem descansada e tentando captar o máximo possível de oxigênio para o meu peito. Então eu olhei aquelas pessoas que subiam à minha frente, olhei as que já estavam no cume... e não pude voltar. Nesse momento (acho que) entendi o que move os alpinistas. Não é simplesmente a superação. Vai além disso. É um sentimento para o qual não consigo encontrar uma palavra de definição (o famoso e clichê "sentimento sem nome"). É um prazer estranho de vencer um desafio e se sentir único e privilegiado.

§ Eu mirei o topo e recomecei a minha caminhanda solitária, parando de passos em passos, inspirando como se não houvesse amanhã. A neve ao meu redor não me importava mais. Enquanto descançava eu via pessoas que tinham desistido e estavam bricando, fazendo bonecos e guerra de neve. Mas não dei muita atenção. O meu objetivo era o alto.

§ Subi até encontrar o meu guia e o meu grupo já descendo, pois o nosso tempo estava acabando. Não fui a única a não alcançar o cimo. Poucos conseguiram, pra falar a verdade. O que não evitou que eu me sentisse um pouco frustada. Passados alguns anos desde esse dia, hoje me sinto até orgulhosa. Afinal, quem é que já subiu uns 5300 metros de uma montanha, hein? Só dá uma pontada de tristeza quando eu lembro que poderiam ser uns 100 metros a mais.

§ Nessa mesma viagem eu fui pro Peru. Não planejei fazer a trilha inca para chegar a Machu Picchu porque até então eu acreditava que aquilo não era coisa pra mim. O que eu queria era conhecer a cidade sagrada dos incas e achava que passar uns 3 dias caminhando exaustivamente, dormindo em barracas sob um frio congelante e se alimentando de comida enlatada era uma perda de tempo, uma loucura comparada à paixão dos alpinistas. Coisa que, como expliquei anteriormente, eu não entendia até então. Estando em Machu Picchu depois do desafio do Chacaltaya a minha mente era outra. E confesso, senti inveja daqueles que chegaram lá no alto depois de andarem dias pelos mesmos caminhos que os incas usavam para chegar à cidade. Vencer esses desafios te faz sentir uma satisfação maior que aquele "prazer de superação".

§ Essa viagem me mudou. Depois dela já encarei um vulcão de 2800 metros coberto de neve. Não alcancei a cratera, mas a dificuldade maior não foi o cansaço, e sim uma nevasca que nos obrigou a voltar da metade do caminho. Também participei de umas trilhas, aqui no Brasil mesmo, que eu não dava importância uns 10 anos trás. Não digo que estou pronta para escalar o Aconcágua ou o Everest. Hoje acredito que não estão ao meu alcance (e talvez da mesma maneira que eu pensava há anos de coisas que depois eu fiz). Só que quando você chega lá se sente desafiado a ser um privilegiado (eu já fui ao "pé" do Aconcágua, mas o tempo foi tão curto que não deu nem pra pensar da possibilidade de fazer as subidas mais simples, para não profissionais).

§ Hoje eu entendo um pouco o prazer dos alpinistas. E o desafio é prazeroso depois que o dominamos. Não acredito nisso de "superar os próprios limites". Eu penso que na verdade descobrimos que os nossos limites estavam além do que imaginávamos. E não se pode dar nome ao sentimento de descobrir que se pode mais, muito mais.

Aconcágua. Vai encarar?

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Lembranças repentinas da infância

§ Quando eu era criança a minha mãe me contou sobre a falha de San Andreas. Ela dizia, enquanto me mostrava no mapa, que um dia haveria um grande terremoto que separaria a Califórnia do resto dos EUA. Ela só não me explicava (ou até o fazia, mas eu era pequena demais pra assimilar tudo aquilo e agora lembrar de todos aqueles detalhes) que isso NÃO se daria em um único sismo e que o afastamento das terras levaria milhões de anos. Então todos os dias eu esperava ansiosamente o início do telejornal, pra ver se haveria alguma reportagem mostrando a separação da Califórnia.

§ Essa espera só era meio a contragosto na época em que passava Carrossel... Naquele tempo só tínhamos uma televisão em casa, e a minha novela preferida passava no mesmo horário dos noticiários. Na batalha entre mim e meu pai, eu era sempre a perdedora...

************************

§ Lembro também de uma vez - eu tinha uns 4 anos - em que uma mulher pediu um pouco de comida na porta do prédio em que a gente morava lá em São Cristóvão. Minha mãe colocou uma parte do que ela tinha preparado pro almoço em recipientes de margarina (que ela junta até hoje e guarda no armário ao lado das tupperwares e dos potes de sorvete) e os entregou à mulher. A mesma, após agradecer, disse que tinha uma filha do meu tamanho e que a levaria no dia seguinte para brincar comigo. Eu, filha única, fiquei numa ansiedade só por poder ter uma nova amiguinha, e perguntava à minha mãe todos os dias se aquela senhora tinha trazido a filha. Essa mulher nunca mais apareceu, nem pra levar a garota, nem pra pedir comida.

*************************

§ Então era assim: durante o dia eu importunava a minha mãe pra saber se a menininha tinha chegado. E durante a noite eu aguardava pra ver na TV a Califórnia transformada em uma ilha, no estilo de "A jangada de pedra".